Com dois traços e entre palavras…

João Luiz

Foi nos idos anos 80 do século passado, depois da visita a uma exposição da sua série “Colagem e transparência sobre cartolina”, que teve lugar na Galeria Augusto Gomes, do Posto de Turismo do Mercado de Matosinhos, impulsionada pelo também pintor e violinista António Cunha e Silva, que o encontro com o artista plástico Rui Aguiar me levou a pensar em convidá-lo para se aventurar na cenografia. 

Estávamos em 1985, sete anos após a fundação do Pé de Vento como Companhia de Teatro para a Infância e Juventude. O espectáculo projectado era “A Guerra do Tabuleiro de Xadrez”, com um texto encomendado a Manuel António Pina a partir da ideia: de se fazer um espectáculo experimental a “preto e branco”, na precisa altura em que se defendia que os espectáculos para o público infantil deviam de ter muita cor e muita agitação. Era essa, pelo menos, a convicção de muitos agentes culturais…

Dessa primeira, chamemos-lhe assim, colaboração resultou, além do cenário e dos figurinos, a impressão de 30 exemplares de uma gravura de sua autoria, evocativa da estreia do espectáculo, bem como um conjunto de colagens feitas expressamente para a publicação da peça, uma das primeiras edições do Pé de Vento na Colecção Borboletra. Este conjunto de realizações artísticas em torno de um texto, e do tema nele abordado, correspondia na prática à própria concepção de intervenção teatral do Pé de Vento. Na nossa perspectiva, o espectáculo teatral é por essência pluridisciplinar, uma vez que convoca para o palco todas as outras artes, mobilizando as várias linguagens artísticas que se interligam cenicamente. 

Em 1987, houve uma intervenção do Pé de Vento no Pavilhão Rosa Mota com este mesmo espectáculo. O palco da representação, um enorme tabuleiro de xadrez, e o conjunto completo das peças foram concebidos e construídos pelo Rui Aguiar, que diz, a este propósito, o seguinte: “Utilizei uma tecnologia mínima, servi-me de arames, pregos, agrafos…”. Algumas dessas peças ainda existem, fazendo parte do espólio artístico do Pé de Vento. Têm sido mostradas em exposições realizadas pela Companhia de Teatro, nomeadamente, em 2008,quando teve lugar na então chamada Galeria do Palácio, na Biblioteca Almeida Garrett, a Exposição – Pé de Vento 30 anos

Ainda a propósito deste espectáculo, em declarações de 1996 publicadas no livro Pé de Vento – Memórias dos dezoito anos, Rui Aguiar faz esta afirmação curiosa:

”…há peças que puxam para um certo tipo de imagem. Por isso não tenho pejo nenhum, por exemplo, em pegar em imagens que invocam o Surrealismo…O caso da peça “A Guerra do Tabuleiro de Xadrez” é uma coisa Duchampiana em termos de inspiração; é um bom exemplo disso mesmo. Aproximei-me desse imaginário por causa da temática da peça. Faço essas incursões independentemente do meu trabalho de artista plástico.” E acrescenta ainda algo de importante: “[…] Fiquei com vontade de fazer mais coisas em termos de teatro, afinal tudo aquilo valia a pena, não caía no abismo.

Assim se iniciou uma parceria que deu origem a uma quinzena de criações teatrais, com estreias absolutas tanto no Porto como em Bruxelas. Essa colaboração regular foi interrompida em 1997, após uma das últimas coproduções realizadas com o Théâtre-Poème.

O espectáculo, que se intitulava “Qual de Mim”, foi estreado em Bruxelas nesse mesmo ano, no contexto de uma evocação do simbolismo luso-belga; e concebido a partir de textos do poeta Eugénio de Castro, com escolha, organização e dramaturgia a cargo de Maria João Reynaud.

No decurso dos 12 anos anteriores foram levados à cena vários textos originais de Manuel António Pina (Entregues à Bicharada); uma primeira peça de Álvaro Magalhães (Na Ilha do Tempo); e “Andando, andando…” de Teresa Rita Lopes. 

Mas também se encenaram dois contos de Óscar Wilde – O Aniversário da Infanta (1991) e O Jovem Rei (1996) – ambos com adaptação em língua inglesa de Michael Lloyd e a colaboração para a língua portuguesa de Mário Cláudio.

De entre os espectáculos que em sucessivos anos subiram ao palco, cabe lembrar aqueles que possibilitaram a criação de objectos cénicos com existência artística própria. Enquanto peças de cenário, ora deram verosimilhança às personagens, ora enquadraram os actores no acto de representação de vidas imaginárias, dispersas por múltiplos tempos. Fora do contexto teatral, adquiriram, porém, a sua aura, como acontece com o carrossel do espectáculo “Ditos & Feitos”, baseado na história de “Pedro das Malas Artes”, uma inolvidável figura da nossa tradição oral. A propósito deste espectáculo, diz Rui Aguiar: – Acabou por ser uma das peças mais complicadas que realizei. Nesse carrossel foi colocado um conjunto de figuras que, conforme o carrossel rodava durante o espectáculo, mostravam a sua duplicidade. Recorda que: Pintou pela primeira vez o cenário, colorindo bonecos que eram recortados primeiro em madeira segundo a figura imaginada: “Havia uma certa analogia com os livros de colorir das crianças, e com o desprendimento característico dos trabalhos manuais. 

Duas dessas figuras, que não fizeram parte do carrossel, estão agora integradas numa escultura que o autor intitulou “A Sereia e o Marinheiro”.

Também integrados numa instalação a que, posteriormente, Rui Aguiar deu o título, “Ponta de Sagres – Assembleia das 7 partidas”, foram parar os “Henriquinhos”, figura criada em 1994 para o espectáculo “Alma Atlântica”. Eram produzidos (simbolicamente) em série, numa das cenas do espectáculo que celebrou os 600 anos do Nascimento do Infante D. Henrique, estreado no Ateneu Comercial do Porto para assinalar a passagem dos 125 anos desta instituição.

Entretanto, em 1989, numa coprodução com o Théâtre-Poème, foi estreado em Bruxelas “O Privilégio dos Caminhos”, com textos de Fernando Pessoa escolhidos e adaptados cenicamente por Teresa Rita Lopes. O cenário foi criado a partir da transparência do tecido, jogando com a fluidez versátil do material e associando o movimento ao facto de o pano poder descer sobre o palco, criando um não lugar, um espaço de dispersão e pulverização em consonância com o universo de Fernando Pessoa. O resultado final era a plena concretização desta afirmação de Rui Aguiar: 

“… Nos meus cenários não há grandes truques, nem engenharias sofisticadas; é um constrangimento que na realidade não é de facto: tudo o que faço neste domínio é perfeitamente transparente, sem truques e num convite dirigido aos espectadores para o entendimento do fenómeno teatral como uma coisa extremamente real. “

O ano de 1993 correspondeu a um período de intensa criação, com a apresentação de dois espectáculos assinaláveis: O primeiro, “Um Homem de Bem”, de Raul Brandão, com dramaturgia de Maria João Reynaud, a partir do texto “Eu sou um homem de bem” e excertos dos contos “Santa Eponina” e “Hélia”, música de Jorge Peixinho e coreografia de Ruben Marks, estreado no Ateneu Comercial do Porto, e mais tarde apresentado tanto nos Arquivos da Alfândega, como na Universidade Católica do Porto. São fundamentais algumas considerações a propósito deste espectáculo (e cito):

“…o cenário era dado fundamentalmente com uma rede que definia um percurso, o labirinto onde o personagem se movia. As formas e as modulações do espaço que se encontram agora é diversa da anterior…De certo modo é como se o mesmo cenário seja sempre revisitado, retocado, modificado nos pormenores…”. 

Ou seja, tornando visível o conflito dramático contido no homem de bem, graças à interligação entre a encenação, o cenário, a música e a coreografia.

O segundo espectáculo, “O Físico Prodigioso”, teve lugar em Bruxelas, integrado numa homenagem à obra e personalidade de Jorge de Sena promovida pelo Théâtre-Poème. Foi o resultado feliz, diria mesmo excepcional, da combinação da cenografia de Rui Aguiar com música de Paulo Vaz de Carvalho para as canções interpretadas pela voz da cantora Margarida Magalhães. Resultado saudado no jornal La Libre Belgique “ nos termos que passo a citar: «La merveilleuse cumplicité entre la mise en scène dont le mouvement incessant fait passer l’intemporel vers le réel, la plasticité inventive du décor e des costumes du peintre Rui Aguiar et la musique originale de Paulo Vaz de Carvalho, …un spectacle qui est fascinant par sa richesse complexe de sa pensée et par sa conception scénique.»

Em 2004, surgiu a possibilidade de levar à cena este espectáculo no Porto, em coprodução com o TNSJ. Com esse objectivo foi criada, uma nova versão de “O Físico Prodigioso”, onde se levava ainda mais longe a concepção cénica, em profunda consonância com a arrojada cenografia de Rui Aguiar, e com a música de Paulo Vaz de Carvalho interpretada ao vivo, com a presença da cantora Sílvia Mateus. O espectáculo subiu ao palco do Teatro Carlos Alberto em Outubro de 2004, sendo a imagem final, “as cascatas de leite e sangue” que, mais tarde, deu origem a um “Home Digital Vídeo” intitulado “Rosas de leite e sangue”.  

Esta longa e produtiva parceria veio possibilitar que se conferisse o devido relevo, em cada espectáculo, à expressão visual, trabalhada em sintonia com a dramaturgia. Essas linhas subterrâneas, que são o esqueleto do espectáculo mas que por força do que são, ténues fios condutores, adivinham-se mas não se vêm.

Assim fomos construindo um universo visual que continua a ser a nossa forma de abordagem específica da contemporaneidade no teatro, contribuindo para a afirmação de uma linha estética que ainda hoje marca os espectáculos levados à cena pelo Pé de Vento. 

Não podíamos deixar de incluir, neste longo percurso, a edificação do Teatro da Vilarinha, com a colaboração de dois amigos seus – a Arquitecta Fernanda Seixas e o Eng. Rui Oliveira – uma sala de espectáculos com caixa de palco e teia que foi sede do Pé de Vento durante 22 anos, com uma programação regular de espectáculos destinados ao público infanto-juvenil, entre Outubro de 1996 e Outubro 2018. Um dos espectáculos realizados para a sua inauguração foi “O Papalagui”.

Gostaria de finalizar sublinhando que o desafio lançado ao Rui para se aventurar nos caminhos da cenografia resultou plenamente, uma vez que ele a cultivou como uma forma de arte sintética, onde a pintura, a escultura e a arquitectura se entrecruzaram. Esta experiência – diz R.A. – veio solucionar-me alguns problemas em termos de artes plásticas, no que diz respeito ao espaço. Um artista plástico tem necessidade de criar coisas que passam para além da superfície da tela… eu acabei por encontrar soluções através do teatro.

Para fechar este breve depoimento, cito as palavras de Rui Aguiar transcritas do livro “Pé de Vento – Memória dos Dezoito Anos”, publicado para a abertura do Teatro da Vilarinha: 

Nunca teria feito cenografia se o João Luiz não me tivesse convidado. Era algo que estava muito para além do meu horizonte. O que é que me seduziu? Foi a forma de diálogo estabelecida. Ao mesmo tempo, o que se iria fazer tinha alguma coisa a ver com aquilo que estava a produzir em termos de artes plásticas. Fui pensando no assunto sempre num clima de liberdade. Esse talvez seja a razão pela qual me mantive a trabalhar com o Pé de Vento ao longo dos anos: tudo tem acontecido sempre num clima de criação, de liberdade e de respeito pelas ideias das pessoas.

Julho/2022