JOÃO LUIZ – PÉ DE VENTO / UM PERCURSO SINGULAR

O porquê esta exposição…

João Luiz

Perante o convite do Teatro Art’Imagem – e especialmente do seu director, José Leitão – para realizar uma exposição que espelhasse o meu trajecto teatral e que, no âmbito do 39º Fazer a Festa, desse simultaneamente uma imagem do Pé de Vento enquanto «presença constante no panorama teatral da cidade do Porto e do país desde há muitos anos» (José Leitão), só podia ficar duplamente agradecido. Agradecido pela homenagem e pelo reconhecimento do meu trabalho; mas também agradecido pela oportunidade que se me ofereceu de coligir alguns documentos de um passado teatral anterior ao 25 de Abril e à criação do Pé de Vento, em 1978.

 

O título da Exposição, “João Luiz | Pé de Vento / um percurso teatral singular, intenta dar uma imagem sintética de um trajecto de mais de 50 anos, iniciado no Porto e numa década emblemática do século XX – os anos sessenta –, em que pude acumular uma diversidade de vivências pessoais, artísticas e intelectuais, ligadas ao convívio com grandes figuras que marcaram a cultura portuguesa da segunda metade do século XX: José Rodrigues, Ernesto de Sousa, Jorge Peixinho, Clotilde Rosa, entre outros. Seguiu-se depois, como refugiado político, a travessia de vários países europeus e o encontro desafiante com realidades culturais e sociais diversas, além da possibilidade de testemunhar momentos de rotura decisivos, como o Maio de 68. A Revolução do 25 Abril de 1974, que marcou o fim da ditadura em Portugal, tornou possível o meu regresso à cidade onde nasci e de que fui obrigado a separa-me, permitindo a concretização progressiva de projectos forçadamente interrompidos. Poderei assim dizer, ao olhar para trás, e não obstante as sombras que subsistem, que me cumpri, uma vez que foi possível criar o Pé de Vento, dando forma real a uma ideia nascida num momento de profunda renovação artística, fazendo-o crescer e consolidando-o até ao ponto de se tornar uma instituição reconhecida pela edilidade do Porto e distinguida com a Medalha de Mérito – Grau Prata, em Janeiro de 2004.

Porque esta homenagem me lembra outros reconhecimentos, o ponto de partida da exposição é a parede de fundo da sala, onde está exposta a Medalha de Mérito Cultural, Grau Ouro, atribuída pela Câmara Municipal do Porto em 2015, pelos meus 50 anos de actividade teatral profissional. À esquerda dessa “moldura” central estão os 10 anos de trabalho que precederam o 25 de Abril; e, à direita, a caminhada percorrida com o Pé de Vento até ao presente.

 

Foi no final do verão de 1964 que comecei a frequentar a Escola do TEP e a integrar um grupo de rapazes e raparigas, de que fazia parte o Manuel António (Pina), quase todos com menos de vinte anos, movidos por uma comum curiosidade em relação à arte teatral e pelo desejo de experimentar “o que é isso de subir ao palco”. 

Nesse ano tinha chegado ao TEP um jovem encenador, vindo de Lisboa – Carlos Avilez –, sendo director da companhia João Guedes. As sessões de iniciação ao teatro, do tipo “movimento e voz”, eram orientadas pelo próprio Carlos Avilez.

E foi deste modo que teve início, nos anos sessenta do século passado, esta longa caminhada teatral:

 

– Integrando o elenco de “A Carta Perdida”, com texto do escritor romeno Ian Luca Caragiale e encenação de Carlos Avilez, em 28/Novembro/1964, tendo pela primeira vez tomado contacto com a Comissão de Censura, que assistiu ao ensaio que precedeu a estreia do espectáculo;

– Fazendo parte, em Fevereiro de 1965, do elenco do “Espectáculo Vicentino”, integrado nas Comemorações do V Centenário de Gil Vicente, com encenação de Carlos Avilez;

– Sendo, paralelamente, nomeado pela Direcção do Círculo de Cultura Teatral para desempenhar as funções de Secretário da Secção do Grupo Experimental de Teatro/Alunos, que se organizou e desenvolveu;

– Em 29 de Agosto desse mesmo ano de 1965 teve lugar a estreia do espectáculo “O Avançado Centro Morreu ao Amanhecer”, do argentino Agustin Cuzzani, de cujo elenco fizeram parte muitos jovens actores e actrizes que continuaram as suas carreiras em palco e são hoje consagrados.

 

Carlos Avilez voltou para Lisboa, onde fundou o Teatro Experimental de Cascais. 

O seu sucessor foi o até então cineasta Ernesto de Sousa, que assumiu as funções de encenador do TEP:

 

– Ao lado de Ernesto de Sousa, artista de plurifacetada imaginação, dei os primeiros passos no trabalho de montagem e direcção, na sequência do convite que ele me dirigiu para ser seu assistente de encenação no espectáculo “Desperta e Canta”, de Clifford Odets, estreado em Dezembro de 1965;

 

– Depois, em Fevereiro de 1966, encontrei-me envolvido numa equipa de criativos que me fez optar definitivamente pela encenação. Ernesto de Sousa propôs-se encenar “O Gebo e a Sombra”, de Raul Brandão. Para a criação deste espectáculo, reuniu vários artistas: José Rodrigues na cenografia, Rosa Ramos nos figurinos e Jorge Peixinho na composição musical. Os dois primeiros marcarão o panorama teatral do Porto durante muitos anos.



Em plena dinâmica artística, voltei a sofrer o peso da ditadura. Algum tempo antes, no final do ano lectivo 1962/63, por decreto publicado no Jornal Oficial, tinha sido expulso do ensino liceal e impedido de me matricular em todos os Liceus do Norte, do Centro e de Lisboa, por ser dirigente da Pró-Associação dos Estudantes do Liceu, então proibida. Em Março de 1964, fui preso pela PIDE e acusado de pertencer ao Partido Comunista. 

Julgado e condenado, em Tribunal Plenário, a dois anos de prisão, com pena suspensa por ser ainda menor de idade (a maioridade era atingida aos 21 anos), fui enviado para Penamacor, Companhia Disciplinar, onde fiz a tropa como soldado raso; e, seguidamente, mobilizado para a Guiné, no contexto da guerra colonial. 

Só me restava o exílio, tendo optado por me instalar em Bruxelas, depois de várias peripécias, entre as quais a travessia dos Pirenéus a pé.

Exilado político no meio de uma comunidade de emigrantes fugidos à fome e à miséria que grassava no meio rural português, cofundei, no final desse ano de 1966, a A.P.E.B. – Associação Portuguesa dos Emigrados na Bélgica –, juntamente com um grupo de portugueses oriundos não só do meio operário, mas também do meio estudantil. Foi uma das primeiras associações de emigrantes, económicos e políticos, fundadas legalmente na Bélgica. Aí teve início uma intensa actividade teatral:

 

 

– No seio desta associação, em Março de 1967, o Grupo de Teatro da APEB levou à cena uma peça de Teresa Rita Lopes cuja representação, no Teatro Nacional Almeida Garrett, então dirigido por Amélia Rey Colaço, tinha sido proibida pela censura. “Os Três Fósforos” subiram finalmente ao palco na presença da Autora, que se encontrava exilada em Paris e se deslocou propositadamente a Bruxelas para assistir à estreia.

 

– Nesse mesmo ano foi realizado um espectáculo em homenagem ao poeta popular António Aleixo a partir dos seus autos, o qual encerrava com um recital de canto e guitarra a partir de versos seus, socialmente mordazes. Este espectáculo foi levado a várias comunidades de emigrantes residentes na Alemanha, na Holanda e na França.



Maio de 68 provocou desencontros de vária ordem, tornando-se impossível prosseguir, no quadro da APEB, a acção teatral até aí desenvolvida junto dos emigrantes portugueses.

– Em 1969 fui cofundador do Teatro de Pesquisa Prego na Língua, que irá apresentar dois espectáculos: o primeiro, com texto de Francisco Palma Dias, em torno do assassinato de Catarina Eufémia: “ Em Portugal Alentejo 1954”. A publicação do texto original, distribuído aos espectadores, incluía o “Manifesto” do grupo – Para um teatro impuro SÓ DE HOMEM.

 

– Seguiu-se um segundo espectáculo, intitulado “Morsure du Dedans”, com textos de vários autores cujas fotos e cartaz se perderam.



Ambos os espectáculos foram apresentados em Bruxelas, no Théâtre-Poème, graças ao acolhimento da sua Directora, Monique Dorsel.

A actriz e encenadora belga Monique Dorsel tinha assistido a uma das representações do espectáculo “Os Três Fósforos”, levada pelo Manuel Jorge, um também refugiado político oriundo da Madeira, mas que tinha residido algum tempo no Porto, na República 24 de Março, tendo feito parte do núcleo de fundadores da UNICEPE, onde nos tínhamos conhecido. Na sequência desse encontro com a Directora doThéâtre-Poème, nasceu o convite para que eu integrasse a equipa pluridisciplinar da companhia.
Aí irei permanecer até ao 25 de Abril de 74:



– Já membro da equipa do Théâtre-Poème, onde desempenhei várias funções (assistente de encenação, programador, técnico de iluminação, entre outras tarefas), fui convidado a encenar um primeiro espectáculo: “A Pedra de Sol”, de Octávio Paz, que será apresentado em Outubro de 1970, no Palais des Beaux-Arts, no quadro da Exposição de Arte Maya;

 

– O segundo, estreado em Março de 1973, “LORCA – Poeta em Nova York & Llanto por Ignácio Sanchez de Méjias”, esteve em cena na sala do Théâtre-Poème, sendo realizadas, paralelamente, representações para o público juvenil em várias escolas da região francófona da Bélgica.

 

­ Em Março de 1974, coadjuvando a Direcção do Théâtre-Poème, organizei “Les Rencontres Populaires”, um conjunto de espectáculos de música e teatro realizados por artistas de várias nacionalidades, que levaram  ao palco a cultura e a língua das comunidades de imigrantes e refugiados residentes na Bélgica.

No dia 20 de Abril, foi realizada a última destas sessões de resistência contra a ditadura, sendo um dos intervenientes José Mário Branco.   



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Com a chegada do 25 de Abril, apesar de ter uma carreira já consolidada em Bruxelas, decidi voltar à cidade do Porto, onde tinha iniciado o meu percurso teatral.

O regresso a Portugal e o desejo de participar na construção de um novo País e de uma nova sociedade levaram-me à docência no projecto pedagógico da Escola Normal, então em reestruturação interna e franca remodelação dos curricula. Fui professor de uma das disciplinas recém-criadas – Movimento e Drama – durante os anos lectivos de 1975/76 e de 1976/77, na Escola do Magistério Primário de Penafiel, participando na concepção do novo programa curricular da formação de professores. 

Mas, por mais enriquecedor e gratificante que tenha sido esse período, começou a faltar-me o outro lado – o da actividade teatral concreta, a que sempre tinha estado ligado, mesmo quando o exílio me impôs uma outra língua e uma outra cultura.

Decidido a sair do ensino quando o Ministério da Educação fez abortar esta experiência, foi em meados de 1977 que começou a ganhar corpo, com urgência, a ideia de criar um grupo de teatro que privilegiasse o público infanto-juvenil, e que pudesse oferecer algo de inovador à nova formação escolar.  




Juntamente com Maria João Reynaud, propus a criação de uma secção de animação teatral na Cooperativa Árvore, lançando as primeiras realizações que antecederam o Projecto Global do Pé de Vento. 

Quando abriu o concurso para apoio aos grupos de teatro da Direcção-Geral de Espectáculos, em Fevereiro de 1978, fomos ao Palácio Foz apresentar o novo projecto de teatro profissional, a ser desenvolvido pelo núcleo impulsionador do Pé de Vento, que já incluía o escritor Manuel António Pina. 

Creio que foi entre Abril e Maio desse mesmo ano que nos chegou a tão desejada resposta: o Pé de Vento tinha sido contemplado com um apoio semestral. 

Começámos a organizar de imediato o Grupo, incumbindo-se o Manuel António Pina de escrever o primeiro texto levado à cena, “O maior intelectual do mundo”, tendo sido Virgínio Moutinho (o Gino) o responsável pela construção do “Ventolão”. Paralelamente, o Pé de Vento, Colectivo de Animação Teatral, passa a ter existência jurídica própria, como Cooperativa.



A estreia do espectáculo teve lugar no final do mês de Julho de 1978, apresentando-se o Pé de Vento ao público na Cooperativa Árvore, onde tinha sido acolhido o seu Projecto Teatral, como Grupo de Teatro para a Infância e Juventude

O percurso oferecido pela presente Exposição dá conta dessa longa caminhada: desde a Cooperativa Árvore e da Rua das Virtudes, onde o Pé de Vento criou a sua primeira sala de espectáculos – no edifício que tinha sido o antigo Clube dos Ingleses –, mudando depois para a Rua do Heroísmo, onde permaneceu alguns anos, até ao momento em que a Companhia vai edificar o Teatro da Vilarinha. E fê-lo num edifício sem uso e bastante degradado, que foi cedido ao Pé de Vento pela Junta de Freguesia de Aldoar, com o apoio da Câmara Municipal do Porto. A sua recuperação teve o objectivo de o adaptar à nova finalidade – ser uma sala de espectáculos dirigida aos mais novos numa zona limítrofe da cidade do Porto, a qual, durante duas décadas, foi a única sala do País com programação dedicada ao público infanto-juvenil.

Dados os condicionalismos impostos pela pandemia, não nos foi possível utilizar os espaços da Quinta da Caverneira onde, como fora previsto, exporíamos cenários, figurinos e outros adereços de cena. Ficámos, assim, confinados à sala de exposições, procurando que as suas paredes espelhassem alguns momentos fulcrais do nosso trajecto. Daí estarem vestidas e revestidas de memórias – traços do que fomos fazendo ao longo de várias décadas. Hoje, fazem também parte da memória de mais de meio milhão de espectadores, como traços de um tempo partilhado.

 

Só num livro várias vezes adiado por falta de financiamento será possível nomear todos aqueles que, em diversos momentos, fizeram parte da equipa artística, técnica e administrativa do Pé de Vento ao longo de quarenta anos, dando o seu contributo para que tenhamos chegado aqui. 




Lá está a “Exposição de Brinquedos de Madeira”, feita na Cooperativa Árvore em Julho/1978, com a colaboração do Museu de Etnografia e História e do seu Director, o arquitecto Fernando Lanhas. E o boneco-barraca “Ventolão, o maior intelectual do mundo”, que marcou a apresentação ao público do Teatro Pé de Vento, em Julho de 1978, seguindo-se “Trabalhadas e Trapalhadas” e “Homenagem aos Pés”, que completa a trilogia do Ventolão; logo depois, “A Arca do Não É”, espectáculo com cenários e figurinos de Rosa Ramos; e, à entrada, um figurino do espectáculo “Quem escondeu o sol e a lua”, com texto de Carlos José Reys; segue-se “O Amigo Dedicado”, uma adaptação do conto de Oscar Wilde, com cenário do pintor Rui Pimentel, que percorreu o país de lés a lés e foi apresentado na Galiza; vem depois a “História com reis, rainhas, bobos, bombeiros e galinhas”, texto encomendado a Manuel António Pina para assinalar os cinco anos de actividade teatral profissional do Grupo, e cujo cenário, figurinos e máscaras são da autoria da Migú (a pintora Maria Augusta Araújo). 

 

Desfilam perante os nossos olhos catadupas de imagens que arrastam infindáveis lembranças, memórias de cumplicidades irrepetíveis em torno de espectáculos que contaram com as implantações cénicas de Rui Aguiar; e, nos últimos vinte anos, com João Calvário, o cenógrafo que criou imaginativamente um mundo para cada espectáculo que realizámos.



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Também nestas paredes estão inscritas as paredes dos vários edifícios que acolheram o nosso trabalho – a Cooperativa Árvore, onde tudo começou; o edifício da Rua das Virtudes, onde O Pé de Vento conquistou o seu público; a Rua do Heroísmo, onde se consolidou a marca estética do nosso teatro; e o Teatro da Vilarinha, lugar de implantação e de conquista de novos nossos públicos, desde 1996. Públicos que foram crescendo em número e em idade, à medida que o próprio Pé de Vento se redimensionava, acontecendo que muitos dos que tinham sido juveníssimos espectadores voltavam a aparecer no Teatro da Vilarinha, trazendo pela mão os seus filhos. Nessas alturas, partilhávamos lembranças dos espectáculos – dos textos, dos intérpretes, dos cenários e figurinos, e até de canções que alguns ainda sabiam trautear…

Quando nos encontramos no umbral da porta de entrada da sala de exposições, olhamos… E o que vemos antes de nos aventurarmos no seu interior, é uma coluna postada no centro e incrustada de máscaras. São máscaras que foram habitadas pelos intérpretes e que foram portadoras do mistério do teatro. É esse jogo de máscaras, sempre presente no palco, quando assistimos a um espectáculo, que nos cativa e subjuga.

 

Quem percorrer esta Exposição, procurará uma saída para o labirinto que lhe propomos. Ao longo destes 40 anos de trabalho, nem sempre conseguimos ter a certeza de que o caminho que trilhávamos era o que nos conduziria à saída com que sonhávamos. O lugar onde chegámos, depois de atravessar o mar de escolhos que está à espera de qualquer navegante, é o de estarmos dispostos a continuar, espectáculo a espectáculo, embora sabendo que o caminho a percorrer é ainda desconhecido.