Memórias de um trajeto:

Pé de Vento 40 Anos (1978-2018)

Por: Maria João Reynaud

 

 

1 Como escreveu Manuel António Pina no livro Pé de Vento – Memória dos Dezoito Anos, editado em fevereiro de 1997, «no mistério da memória confundem-se sonho e realidade, vivido e invivido». É a partir desta mescla luminosa que tentarei respigar as memórias do trajeto de uma Companhia de Teatro que agora completa Quarenta Anos de atividade contínua dirigida ao público infanto-juvenil.

Em 1977, no rescaldo do 25 de Abril e num tempo de plena renovação, o João Luiz e eu acalentávamos o sonho de criar um Grupo de Teatro para Crianças. Ambos dávamos aulas – ele, regressado de um longo exílio em Bruxelas, na Escola do Magistério Primário de Penafiel; eu, como professora efetiva do 2.º Grupo, numa Escola Secundária do Porto. Dos nossos encontros, na Cooperativa Árvore ou no Café Piolho, nasceu a ideia de criarmos um grupo de teatro que respondesse às exigências de uma sociedade em mutação e que privilegiasse os espectadores mais novos – ou não fossem eles, ontem como hoje, a imagem tangível do futuro. 

Portadores de uma imaginação em estado puro e detentores de um espírito crítico cuja genuína sinceridade se torna muitas vezes embaraçosa para os adultos, eram estes, sem dúvida, os nossos recetores ideais. A experiência adquirida pelo João Luiz durante dez anos de permanência no Théâtre-Poème de Bruxelas, onde se profissionalizou como Encenador, vinha cruzar-se com o meu desejo de levar o teatro às escolas – ou as escolas ao teatro. O que me movia era a firme convicção de que o gosto pela língua materna e pela literatura se reforçaria num ensino onde o teatro fosse uma presença viva e constante. A prática de um ensino aberto e dialogante levava-me a apostar num projeto que tinha pés para andar e para voar

É, pois, com esta nota pessoal que me incumbo, também no papel de dramaturgista, de uma tarefa evocativa que não é fácil. Primeiro, pela consciência da vertiginosa passagem do tempo; depois, porque corro o risco de esquecer o que, em determinados momentos, foi decisivo para a prossecução do caminho; e, por último, pela presença, nesta sala, de alguns daqueles que acompanharam e acarinharam o trabalho da Companhia, ou que com ela estreitamente colaboraram. E dos que continuam a dar o melhor da sua criatividade e do seu esfoço ao Pé de Vento, enfrentando agora dificuldades inesperadas para que o trabalho prossiga e se renove nas suas diversas vertentes.

2 Volto assim ao ano de 1977, mais precisamente ao momento em que descobrimos o livro O País das Pessoas de Pernas para o Ar, de Manuel António Pina, em que a ousadia temático-formal se conjugava com um prodigioso talento, apontando um possível caminho à dramaturgia portuguesa. A ideia de o associarmos à criação de um Grupo de Teatro para os mais jovens, logo avançada pelo João Luiz, levou-nos a procurá-lo sem demora. 

O encontro teve lugar no Piolho, mas a nossa conversa continuou pela noite dentro, na sua velha Diane branca. E cito o que ele próprio escreveu: «Eram tempos propícios aos sonhos, esses, e sonhava-se sem querer e sem dar por isso, quase como se respirava. Mas alguns sonhos expõem-se tão desmesuradamente diante de nós que é impossível continuar a fechar os olhos. O da Maria João e do João Luiz era uma companhia de teatro. Não sei se alguma vez alguém, de chofre, vos disse: “Tenho um sonho!”. E, depois, vos empurrou para dentro dele. É uma responsabilidade enorme saber de um sonho alheio e encontrar-se subitamente dentro dele, e é preciso ser temerário para não pensar então: “E se não sou capaz?”».

Graças a esta dúvida, o Manuel António Pina foi catapultado para o âmago do nosso sonho, permitindo pô-lo em marcha e realizá-lo a curto prazo. Em Julho de 1978, estreámos no jardim da Cooperativa Árvore o primeiro espetáculo do Pé de Vento, cujo texto, «Ventolão, o Maior Intelectual do Mundo», abriu a Trilogia do Ventolão. Seguiram-se mais dois: «Trabalhadas e Trapalhadas» e «Homenagem aos Pés». Ainda incrédulo com o sucesso destes espetáculos, Manuel António Pina lançou-se à tarefa de escrever uma série de novos textos, todos excecionais, levados à cena com regularidade: O Homem do Saco (1980); A Arca do Não É (1981); O Dia das Mentiras (1982); História com Reis, Rainhas, Bobos, Bombeiros e Galinhas (1983); A Guerra do Tabuleiro de Xadrez (1985). 

Depois de quase duas décadas em que o Pé de Vento apresentou, predominantemente, espetáculos em regime de itinerância, a Companhia encontrou finalmente um espaço próprio na cidade do Porto, com a sua instalação no Teatro da Vilarinha, aberto ao público em Outubro de 1996. Manuel António Pina aceitou então a proposta de ser “escritor residente” no Pé de Vento, o que logo se concretizou com a adaptação ao teatro de uma novela sua, já editada em livro, que deu origem ao Díptico Dramático em Torno do Mar. A primeira peça, Os Piratas, foi estreada em Abril de 1997, integrada na temporada que marcou a abertura desta nova sala ao público. Seguiu-se, menos de um ano depois, O Adamastor ou aquilo que os olhos vêm, peça levada à cena em Fevereiro de 1998, e um dos melhores textos de teatro para crianças e jovens dos últimos 20 anos. 

Alguns anos depois, Manuel António Pina escreveu A Noite, belíssimo texto dramático que deu origem a um inesquecível espetáculo, estreado em Janeiro de 2001 e visto por milhares de espectadores; e, em 2003, O Poço. Até que, para assinalar os 30 anos da nossa parceria com o escritor, em 2008, surgiu uma nova fase de produção dramatúrgica – a de um teatro centrado na figura do narrador – iniciada com a estreia de História do Sábio Fechado na sua Biblioteca, que por diversas vezes repusemos em cena. 

Ao longo de quatro décadas de trabalho contínuo, que nunca vacilou perante dificuldades financeiras e incertezas, foram várias e divertidas as peripécias que envolveram a escrita dos textos pelo Pina, muitas vezes em simultâneo com a montagem dos espetáculos. O meu papel de dramaturgista consistia, numa primeira fase do trabalho, em ir buscar os textos que ele acabara de escrever, cabendo-me registar as observações, ou as interrogações, que deveria transmitir ao João Luiz. Posso resumi-lo assim: depois do purgatório de uma prolongada espera, na pequena antecâmara da sala de redação do Jornal de Notícias (onde o Manuel António Pina então trabalhava); ou no saudoso Café Orfeuzinho; ou, em tempos mais recentes, no Café-Restaurante Convívio, o Pina acabava enfim por aparecer com um maço de folhas de papel na mão e um ar de penitente aflito, pedindo desculpa pela tortura que involuntariamente me infligira…

No fim dos encontros, ficava quase sempre selado o compromisso da entrega da última versão ao João Luiz, porque era de facto numa última conversa entre ambos, já próxima da estreia, que o texto chegava à forma definitiva. Ambos continuavam a representar os papéis vicentinos de Belzebu (Pina) e Dinato (João Luiz), com que se tinham iniciado, como juveníssimos atores, no palco do TEP (Teatro Experimental do Porto), dando início a uma grande e inabalável amizade.

Eis o testemunho de Manuel António Pina: «Quando a companhia “precisou” de sequências “cantabiles”, escrevi-as; quando, aqui e ali, pareceu conveniente ao espetáculo alterar, reduzir, acrescentar, procurei alterar, reduzir, acrescentar… as regras que me foram impostas para escrever (…) tornaram o meu trabalho mais complexo, mais frágil e mais divertido. Que as necessidades do “Pé de Vento” não tenham aguçado por aí além o meu engenho, é só culpa do meu engenho. (MAP) 

Já depois do seu desaparecimento, foi adaptado à cena o conto «O Pedido de Casamento» (retirado de Queres Bordalo? Contos de Manuel António Pina, Lisboa, Edição do Museu Bordalo Pinheiro, 2005), com o título Os Macacos não se Medem aos Palmos, e que constituiu a homenagem do Pé de Vento ao Prémio Camões, prestada em 2013. Seguiu-se O Tesouro, texto de celebração e memória do 25 de Abril escrito por Pina alguns anos antes, e que subiu à cena em 2014, para assinalar os 40 anos da Revolução de Abril de 1974.

 

3 O princípio de parceria criado com Manuel António Pina estendeu-se àquele que é um dos maiores escritores para a infância e juventude da literatura portuguesa atual: Álvaro Magalhães. O desafio que lhe fizemos permitiu que o Pé de Vento levasse à cena uma série de textos inéditos em espetáculos que obtiveram o maior sucesso junto do público infanto-juvenil. 

O tempo não permite que vá além da sua enumeração: O Jardim de onde nunca se regressa (1986); Enquanto a Cidade Dorme (1999); Todos os Rapazes São Gatos (2005); O Brincador (2005); História de um Segredo (2005); O Rapaz do Espelho (2010); O Senhor do seu Nariz (2011); O Velho e a Sua Linda Nogueira (2013); O Lugar Desconhecido (2015); Contos do Lápis Verde (2016). E, por último, O Senhor Pina, uma adaptação do texto homónimo, que o Pé de Vento estreou em Maio de 2018 no TeCA, numa Coprodução com o Teatro Nacional São João – como a nossa grande homenagem a Manuel António Pina, no ano em que comemoramos quatro décadas de trabalho contínuo e em que ele completaria 75 anos. 

Da parceria estabelecida com Tersa Rita Lopes resultaram três peças admiráveis, apresentadas em estreia absoluta: Andando, andando (1988); O Rimance da Malmaridada (1997, com reposição em 2000); A Asa e a Casa (2003). Lembremos que Teresa Rita, grande estudiosa de Pessoa, é autora de Os Três Fósforos, peça mítica que a censura impediu que o Teatro Nacional D. Maria levasse à cena, mas que foi representada em Bruxelas no ano de 1967, por iniciativa da APEB (Associação Portuguesa dos Emigrantes na Bélgica), com encenação de Francisco Palma Dias e João Luiz.

Entre as mais de setenta estreias absolutas feitas pelo Pé de Vento no Teatro da Vilarinha (nome com que o Grupo batizou este espaço depois de, há mais de vinte anos, o ter recuperado e adaptado a sala de espetáculos), conta-se ainda a peça de Artur Costa intitulada Camilo e Ana Augusta, representada em 2006. Foram muitas as adaptações de textos de escritores clássicos e contemporâneos que subiram à cena durante as últimas décadas, como Gil Vicente, Miguel Torga, Jorge de Sena, Eugénio de Castro ou Raul Brandão. Entre os escritores estrangeiros, refira-se Oscar Wilde (O Jovem Rei e O Aniversário da Infanta); Eric Sheurmann (O Papalagui) ou Richard Demarcy (O Segredo). 

Mais recentemente, o repertório da companhia alargou-se a autores mais jovens. É o caso de Gonçalo M. Tavares, com adaptações cénicas que deram origem a vários espetáculos, como O Senhor Juarroz (2008), ou O Senhor Valéry (2009). E à representação, em estreia absoluta, de um texto encomendado ao já consagrado escritor: O Bem, o Mal e o Assim-Assim, uma coprodução com o Teatro Nacional São João, estreada no TeCA em Outubro de 2016. 

A abertura do Pé de Vento a jovens dramaturgos ou a novas dramaturgias permitiu que novos espetáculos, encenados por Rui Spranger, subissem à cena, atraindo novas correntes de público. Destaco o espetáculo O Lobo sou Eu, com um talentoso texto de Eduardo Leal, estreado em 2017.

 Muitos dos textos expressamente encomendados a autores como Manuel António Pina, Álvaro Magalhães, Teresa Rita Lopes, Artur Costa, depois de encenados, foram editados em livro. Algumas dessas edições integram, hoje, o Plano Nacional de Leitura. Bastaria isso para comprovar que o nosso trabalho não foi em vão…

A revista Borboletra, de que apenas saíram dois números, deu origem a uma peça musical de Jorge Peixinho, estreada na Cooperativa Árvore por iniciativa do Pé de Vento e cuja partitura figura na Exposição Musonautas, ainda patente na Biblioteca Almeida Garrett e comissariada, entre outros, por Pedro Junqueira Maia, compositor responsável pela criação musical de alguns dos espetáculos mais recentes do Pé de Vento. 

As inumeráveis criações levadas à cena por João Luiz contaram com a criatividade de artistas plásticos como Rosa Ramos ou Maria Augusta Araújo. O talento do pintor Rui Aguiar marcou vários espetáculos do Pé de Vento e tornou memorável a estreia de «O Físico Prodigioso», de Jorge de Sena, com música de Paulo Vaz de Carvalho. Também Cândido Lima, grande compositor radicado no Porto, aceitou dar, uma ou outra vez, a sua colaboração ao Grupo. 

Para que um texto exista cenicamente é imprescindível a capacidade artística dos atores que lhe dão voz, mas também o saber de quem domina cada uma das múltiplas linguagens cénicas, sem as quais não há espetáculo teatral. A equipa de João Calvário (cenografia) Rui Damas (iluminação), Susanne Rösler (figurinos), Rui Azevedo (execução de cenários), Hugo Valter Moutinho (vídeo) permitiu que a mais pura magia acontecesse em muitos espetáculos do Pé de Vento. Quanto aos atores que continuam próximos – Rui Spranger, Sónia Correia, Anabela Nóbrega, Patrícia Queirós – e Jorge Mota – bem hajam por amarem a palavra nos múltiplos registos por que ela se manifesta ou comunica no teatro, e por prezarem a sua dimensão poética, fazendo que dela nasça o silêncio irradiante em que perdura.